Tramita na Câmara Federal dos Deputados o Projeto de Lei n° 94/21, que propõe a inserção de novos dispositivos no Estatuto do Idoso para garantir a preservação da dignidade do idoso LGBTQI+ residente em ILPI. Ao mesmo tempo, na Câmara dos Deputados de São Paulo, o projeto de lei quer proibir a publicidade com alusão a "preferência" sexual.
Num mundo ideal, não seria necessária qualquer lei para garantir o tratamento isonômico entre todos nós. Porém estamos no Brasil, um país onde o preconceito é estrutural com diversos grupos da população e não se pode negar que a população LGBTQI+ está no alvo constante daqueles que não respeitam a existência do outro. É possível verificar nas estatísticas que este é o grupo populacional que mais morre em razão da violência.
A proposta do projeto de lei 94/2021 insere os incisos nos seguintes artigos no Estatuto do Idoso:
Art. 49. As entidades que desenvolvam programas de institucionalização de longa permanência adotarão os seguintes princípios:
(...)
“V – observância dos direitos e garantias individuais das pessoas idosas, com tratamento digno, respeitoso e isento de quaisquer formas de discriminação." (NR)
Art. 50. Constituem obrigações das entidades de atendimento:
(...)
“XVIII – oferecer ambiente de respeito e tratamento isonômico, garantindo a preservação da dignidade das pessoas idosas em todas as situações, independentemente de origem, raça, sexo, cor, orientação sexual ou identidade de gênero."
Não vou entrar no mérito do autor do projeto e se o objetivo aqui é mesmo defender e construir prerrogativas à comunidade LGBTQI+. Estou considerando apenas o alcance jurídico da proposta, que é positivo e importante.
Lamentavelmente já ouvi de um idoso gay acolhido em uma ILPI filantrópica, de que para garantir sua permanência na instituição, teve de “voltar pro armário” – palavras dele.
Em 2016 fui até uma ILPI para uma palestrar aos funcionários. Lá conheci um residente com Parkinson que precisava de apoio para as atividades diárias. Sem poder contar com os familiares, que se recusaram a conviver com ele quando assumiu sua orientação sexual e com uma rede de apoio afetiva sem condições de auxiliá-lo, foi acolhido naquela ILPI a partir da intervenção da assistência social do município.
Ele me disse algo como: “que tinha de controlar a forma como falava, evitar algumas brincadeiras e ‘manter a postura’” A maior preocupação dele era de que seus parceiros de quarto triplo descobrissem que era gay. “E se todos recusarem minha presença? E se o asilo não quiser ficar comigo, vou pra onde?”
Estou em contato com idosos diariamente. Já ouvi histórias lindas de superação, de apoio familiar, do estabelecimento de uma rede afetiva sólida, assim como já ouvi histórias muito tristes de abandono, negligência, pobreza e solidão extremas. Mas este relato de pavor e de uma resiliência imposta, me jogou no chão. Só pude apertar a sua mão e deixar que ele visse meu pesar e meus olhos cheios de lágrimas. Ele esboçou um sorriso e com a mão trêmula fez um sinal de silêncio e falou baixinho. “Não chora porque não posso chorar. Aqui, homem não chora” e conseguimos rir daquela situação tão bárbara.
Fiquei com ele por algumas horas. Tomamos o café juntos, empurrei sua cadeira pelo quintal, sentamos debaixo de uma árvore e ele me contou parte da sua história. Tentei chamar as memórias felizes, as lembranças boas que temos guardadas.
Me chamou atenção o fato dele nem perguntar por que fui falar justamente com ele e como cheguei no assunto da sua sexualidade. Bom, ele devia saber que a sua orientação sexual era assunto na equipe de cuidados e na gestão da casa – se de maneira positiva ou negativa, com qual objetivo... quem saberá? Sabia que eu estava ali para falar com os funcionários sobre o que poderia caracterizar violência contra a pessoa idosa. E eu quero crer que ele soube que podia confiar em mim.
Não pude vê-lo de novo, pois a ILPI onde estava em uma cidade bastante longe da minha. Liguei algumas vezes e um dia fui informada de que um sobrinho tinha ido buscá-lo para levar para a sua cidade natal. Construí na minha imaginação de que ele está com as pessoas que o amam e morando fora do armário.
Até hoje eu me pego pensando no envelhecimento LGBTQI+ e na desumanidade a qual são submetidos. Não bastando a luta inglória para se manter vivo, ao adentrar na velhice, ainda sofrerá mais atrocidades nascidas no preconceito (e devo dizer que o preconceito com o velho é bastante grande dentro da própria comunidade LGBTQI+).
Voltando aos projetos de lei – ainda necessários neste país onde a liberdade de ser quem se é não é permitida para todos, mesmo que conste na Constituição Federal - tramita na Câmara dos Deputados do Estado de São Paulo o PL504/2020 que traz uma proposta estúpida, esdrúxula, imoral, preconceituosa e tudo mais que eu poderia escrever, mas é impublicável.
Diz a proposta, que apresento já com a emenda de uma nobre deputada nacionalmente conhecida por seus arroubos e balançar freneticamente uma bandeira do Brasil no púlpito legislativo:
Artigo 1º - É vedado em todo o território do Estado de São Paulo, a publicidade, por intermédio de qualquer veículo de comunicação e mídia que contenha alusão a preferências sexuais e movimentos sobre diversidade sexual relacionado a crianças.
Artigo 2º - As infrações ao disposto no artigo primeiro desta Lei serão, a princípio, multa e o fechamento do estabelecimento que atuar na divulgação até a devida adequação ao que dispõe esta lei.
Artigo 3º - Esta Lei entrará em vigor dentro de trinta dias a contar de sua publicação.
A justificativa da emenda é ainda pior do que o próprio texto:
Considerando que o uso indiscriminado deste tipo de divulgação trariam real desconforto emocional a inúmeras famílias além de estabelecer prática não adequada a crianças que ainda, sequer possuem, em razão da questão de aprimoramento da leitura (5 a 10 anos), capacidade de discernimento de tais questões.
Já é possível observar um movimento nas redes sociais e dos meios de publicidade contrários a este projeto de lei. Nosso sistema legislativo e de pesos e contra freios dos poderes certamente não deixarão uma atrocidade desta ganhar status de lei. Eu realmente espero e acredito nisto.
Bom, sonhar ainda é possível e não pode ser proibido por qualquer determinação de lei.
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