O preconceito do brasileiro com o envelhecimento torna-se nítido quando observamos os idosos sendo colocados na posição de vítimas da sociedade e da família, sentando-os na cadeira de "coitadinhos", esquecendo que muitas vezes, sua realidade é a colheita de uma vida de maus tratos.
Automaticamente, nós somos induzidos pela ideia coletiva de que todo idoso é um ser extremamente vulnerável, bondoso, carinhoso e indefeso. Esta leitura sobre os idosos demonstra o quanto somos preconceituosos com relação ao envelhecimento.
Por diversas vezes, enquanto ministrava alguma capacitação com profissionais que lidam diariamente com idosos (em instituições ou não), tive de lembrar que aquelas pessoas são seres humanos que, muito provavelmente, cometeram erros, falharam com pessoas ou, ainda, carregam um histórico de bastante violência doméstica.
Certa vez, fui chamada numa ILPI para mediar uma conversa. O caso que me foi relatado se encaixava no clássico "acolheu o pai numa instituição e abandonou o pobrezinho". Mas a hhistória não era bem esta.
Pois bem, o idoso foi levado para a ILPI após o falecimento de sua esposa. A filha, única, levou o pai com demência senil para ser atendido nas suas necessidades. Ela, uma médica, com bom poder aquisitivo, escolheu uma casa linda, com excelente localização, optou por um quarto individual e não deixou que nada faltasse ao seu pai. Nada. Porém, faltava a sua presença.
A administração da casa começou a questionar a ausência da filha e estavam prontos para encaminhar a informação de abandono afetivo ao Ministério Público, quando sugeri uma reunião de mediação. O idoso mal tinha capacidade de lembrar do seu nome, então, trabalhávamos no escuro com relação à informações.
Chamada a filha, esta compareceu para a reunião. Estava nervosa, agitada, com as mãos trêmulas. E eu logo pensei que ela sabia que estava fazendo alguma coisa errada. Desde o acolhimento, já se passavam oito meses e nenhuma visita, nem da filha, nem dos netos. Ninguém. Importante dizer que nada de material ou de atendimento faltou ao idoso.
Iniciamos a conversa com a psicóloga na condução. Mas lá pelas tantas, em meio as teorias, citações e leis, a filha pediu para ficar sozinha comigo. E assim fizemos. Saíram todos e ficamos nós duas.
Ela foi direta: "Eu odeio ele" e eu tentei ser tão objetiva quanto a moça: "E odeia por quê?"
Não vou esquecer os olhos dela. Eles carregavam um peso, uma dor, um descontentamento tão grande... aquilo não era ódio, era tudo que uma pessoa exausta emocionalmente conseguiria carregar.
"Ele abusou sexualmente de mim. Me estuprou, doutora, por longos anos... é crime eu não querer estar perto dele?"
Meu impulso foi segurar na mão dela e deixá-la falar. Entre um soluço e outro, ela conseguiu dizer que durante sua adolescência, ela foi abusada periodicamente e que ao sair da sua cidade para estudar, usou dessa desculpa para se afastar. Tinha uma outra irmã, que cometeu suicídio. "Até hoje acho que ela passou pelo mesmo que eu, e sucumbiu", me disse.
Manteve contato com a mãe, mas nunca teve coragem de contar. Não sabia se seria acreditada, ouvida, amparada. E passou a usar o seu ódio para impulsioná-la para um futuro promissor. Quando a mãe e o pai adoeceram, trouxe para a mesma cidade.
Tentando manter distância, ajudou financeiramente. Sua mãe cuidava do marido senil, com demência e dependente para quase tudo, quando teve um AVC e faleceu. Restou aquela filha e seu pai, o algoz da sua adolescência.
O que ela conseguiu fazer foi colocá-lo numa casa geriátrica e num rasgo de vingança às avessas, na esperança que houvessem momentos de lucidez em seu pai, optou por uma casa de alto padrão, de valor bastante alto.
"Naquele um segundo que ele percebe onde está, quero que ele saiba que a vagabunda - como disse que era chamada pelo pai - é quem paga a bela vista que ele tem da cama hospitalar que eu comprei".
Ela estava, portanto, mostrando para todos ali que aquele idoso gentil, educado e paciente, nada parecia o pai violento, que manteve a esposa sob tensão toda uma vida e abusava de sua filha.
Automaticamente, julgamos e punimos os filhos, a família estendida. Porém, é preciso lembrar que somos seres humanos durante toda a vida e, na velhice, impreterivelmente, vamos colher o que plantamos ao longo da vida.
Por isso digo que o capital em que mais devemos investir ao longo da vida, é o afetivo. Construir relações de afeto, de troca, de companheirismo e de cuidado, seja com pessoas com vínculo familiar ou não. Porque ao menos para uma pessoa, até o pior dos bandidos consegue ser bom.
Vamos refletir sobre como olhamos os idosos e de forma instintiva os colocamos como indefesos e sem passados para serem analisados?
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